Tempos sombrios sob o termômetro da arte


Algo muito sério acontece, e não diz respeito à simples divisão entre "coxinhas e petralhas", "favoráveis e contrários", ou qualquer outra coisa ao gosto do freguês.

O Santander Cultural começou uma exposição chamada "Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", que iria até outubro.

A exposição organizava obras de diferentes estilos, artistas e épocas e buscava chamar tematicamente a atenção a questões de sexualidade e gênero no Ocidente. Dentre as obras, estavam ali gente de peso. "O Eu e o Tu", de Lygia Clark, e "Retrato de Rodolfo Jozetti", de Portinari, dividiam espaço com outras 270 obras de mais de 80 artistas. Constavam ali obras que sequer faziam parte do horizonte das "discussões" atuais, recuando inclusive para as últimas décadas do século XIX.

O MBL começou a acusar sistematicamente o evento, acusando-o de incitação à "zoofilia" e à "pedofilia". Esse vídeo fala em "zoofilia", "putaria" e "desmonte dos valores judaico-cristãos".

Surpreendentemente, o banco recuou e... cancelou a exposição!

O líder do MBL, Kim Kataguiri, comenta que desde von Mises o aprendizado é de que não existem mais reis, mas clientes, e o Santander, ao fechar a exposição, trata seu cliente como "rei". Disse ele:
Zoofilia e Pedofilia não tem absolutamente nada a ver com tolerância ou igualdade em relação aos LGBT (...) Mas isso não significa que podem pegar o nosso dinheiro, o dinheiro público para promover uma exposição para promover pedofilia, zoofilia e com hóstias, escritas com coisas como cu, como vulva, logo abaixo de uma imagem de Jesus Cristo.
O banco se manifestou publicamente. Em nota, pediu desculpas "a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra", e emendou:
 O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade.

Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.

A Revista Veja - a Veja! - mostrou as imagens com os pontos mais polêmicos.

Tudo isso é muito preocupante, pois não diz respeito a um episódio qualquer, mas ao que (de novo) estamos nos tornando. Ou senão, vejamos:

As "crianças viadas"



Uma das obras, que se refere ao termo "criança viada", é a colocação em arte de um meme que circulou não apenas nos meios LGBT: a multiplicação de fotos antigas, de filme, nas quais adultos postavam retratos de infância fazendo simplesmente pose de crianças, sem qualquer "norma" prévia. Como diria qualquer estudioso de Psicomotricidade (sério, busquem a respeito disso), a postura infantil é simplesmente diferente da adulta, do equilíbrio à rigidez muscular e à própria forma do corpo. As crianças são simplesmente desengonçadas, podendo eventualmente aparecer em fotos de uma forma que um eventual tirador de sarro chamaria de "viada". Disso ao meme (especialidade dos brasileiros, aliás), foi um pulo. A expressão "criança viada" não passou de uma tiração de sarro (também sujeita a todos os exageros tipicamente brasileiros, aliás...), uma brincadeira leve e descompromissada.

O meme ocorria desde 2012 e até então não havia sofrido qualquer repercussão negativa. A artista, Bia Leite, utilizou o meme para tematizar precisamente esse caráter de uma infância livre dos preconceitos adultos, muito longe de qualquer prejulgamento sobre sexualidade.

Disso, honestamente: qual é o caso mesmo? Não deixar as crianças verem? A meu ver, seria de fato meio chocante ver criancinhas em fila indiana numa exposição dessas, do mesmo modo que o jardim de infância francês visita o Museu de História Natural (se bem que lá tem cadáveres sem pele feitos pelos naturalistas do século XIX - será que um MBL incitaria também à proibição disso?).

Não tem qualquer lógica! Mas me parece difícil - senão surreal - pensar que alguma criancinha esteve de fato ali. Não vi qualquer referência real disso, mas se visse, isso não significa que uma exposição assim não deva existir, mas sim que o público destinado está um pouco estranho...

Os tempos estão tão loucos que é preciso comentar algo mais. Quando eu tinha 13 anos e estava na sétima série, aprendi muito bem nas aulas de Ciências - algo meio esquecido hoje em dia - sobre o que eram "órgãos sexuais" e "orientação sexual". Agradeço às aulas de Ciências por aprender ali algo sobre a vida, inclusive para não falar besteira e não me sentir um idiota numa eventual exposição sobre "crianças viadas".

Vamos ser sinceros? Você, leitor, acredita que crianças muito novas visitariam algo assim, e que as crianças mais velhas contemplariam tudo se mantendo simplesmente abestalhadas? Desculpe, mas quem pensa assim está idiotizando a si próprio e suas próprias crianças.

Além do mais, nos distanciamos do ponto: onde está a pedofilia, ou pior ainda, a incitação a ela? Pelo que eu saiba, arte não é incitação, e pelo visto, a arte em questão não incita (a não ser para eventuais perversos, certo?). Vivemos, sim, em tempos sombrios. 

"O que não está em linha com nossa visão de mundo"

Se "discutimos" tais coisas, é porque o leitor esqueceu de uma palavrinha chamada iconoclastia.

Vale fazer o experimento: cruzar no Google (desculpem a palavra erótica "cruzar") as palavras "iconoclastia" e "história da arte". A arte moderna (sério, vale pesquisar), para não dizer a arte em geral, sempre teve episódios iconoclastas. 

Essa não é a primeira, nem será a última exposição, que mostra cenas de sexo e zoofilia, aliás, figuras constantes de arte "iconoclasta". Não esqueçamos também a exploração das figuras religiosas. Vale dizer: não é simples culto ao diabo (gente, não faltem às aulas de História ou aos rodapés de suas Bíblias!), mas sim... arte!

Eis novamente o ponto: as pessoas estão perdendo a noção das coisas, e isso não é privilégio da "direita".

A julgar o que andam escrevendo por aí, é de se perguntar sobre quando foi que a arte virou um manual de instruções dizendo o que as pessoas devem ser, ou ainda algo que só pode existir a gosto do freguês. Não seria a arte um modo de expressão, eficaz inclusive para compreendermos nosso próprio mundo? Aliás, dêem uma olhada na "temível" imagem que, segundo o MBL, "incita" a zoofilia:



Surpreende, e muito, ver o banco dizendo que se preocupa em "promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo" e, logo depois, por simples pressão de um movimento como o MBL, declarar que tais artes "desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo", não gerando "inclusão e reflexão positiva" e "perdendo" "seu propósito maior, que é elevar a condição humana" (sic! - quase entrevi Platão no meio).

Se algo está indo ladeira abaixo por aqui, é a condição humana. Pressionado por um movimento partidário que se auto-declara "Brasil livre", um banco recuou toda a logística de sua exposição de arte. E a cereja do bolo: chamaram o banco de esquerdista e comunista (!)

Pelo visto, já estamos em plenos tempos sombrios de patrulhamento ideológico. A vigilância sobre a arte o atesta. A História já ensinou bastante sobre onde isso foi parar. Aliás: não é exatamente isso que o MBL julgava acusar naquilo que chama de "adversários"? Não é de se admirar que isso apenas ocorre sob forma de reação, e da pior possível: da auto-promoção de um movimento sob a projeção de um inimigo perpétuo e conspiracionista. Inimigo que adquire existência  quando o "Movimento" bem entender e apontar o dedo. Pura doutrinação.

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