A imortalidade transformada em vinil

É curioso. A crença cristã de que os mortos deveriam ser enterrados tem (ou tinha) um papel bem preciso para os ocidentais: no dia do Juízo Final os mortos se levantarão do túmulo para o julgamento.

Essa narrativa possui inúmeras variantes e até problemas filosóficos. Por exemplo, o que aconteceria num caso de canibalismo, ou de alguém enterrado com as partes separadas, ou mesmo com os restos devorados por outros animais? Como se apresentariam no dia do Juízo?

Por diferentes que sejam as narrativas, persistia algo comum: havia algo no homem de imortal, e esse algo faria corpo com o próprio corpo do sujeito. Em suma: viver não é ter uma simples vida que vai à cova, pois meu corpo e minhas ações criamos resultados importantes para os homens - e até ao destino celeste - que ultrapassam em muito nossa simples existência terrena, ou mesmo o papel terreno de nossa existência.

Chega a ser redundante dizer que para o ocidental - não apenas para o cristão -, e para tantas outras  culturas, a morte nunca foi o mero fim da vida.

Mas hoje em dia não ocorre exatamente o mesmo. Veja-se, por exemplo, a empresa que oferece o serviço de transformar cadáveres em objetos de uso - discos de vinil ou canecas, por exemplo. Como se, ao invés de você mandar que fizessem um vinil ou uma caneca com sua foto, o próprio vinil ou caneca poderiam ser você. 

Na reportagem, a existência de uma velha senhora ganhou serventia - e sentido - ao servir para os lamentos privados de algum parente que ficou. Tudo o que ela foi, convertido não em espera pelo Julgamento ou a realização final do Universo, mas num simpático vinil. Num belo dia, ele pode "tocar" a velha. De uma forma bem diferente do jovem que conseguiu jogar videogame com seu pai falecido, aliás (eu diria: aí sim, uma história com desdobramentos interessantes a partir de nossas tecnologias)

Voltemos ao vinil da velha. Como vantagem, a empresa declara: um artigo como o vinil pode durar diversas gerações!

Isso não deixa de ser um pouco perturbador. Lembro, por exemplo, da decisão de Aquiles, o herói grego que fundou o Ocidente: ele poderia fugir de Tróia e constituir uma vida econômica, ou poderia ficar e morrer, transformando-se em imortal. Que o leitor fique com a passagem da Ilíada:

Na verdade me disse minha mãe, Tétis dos pés prateados,
que um dual destino me leva até ao termo da morte:
se eu aqui ficar a combater em torno da cidade de Tróia,
perece meu regresso, mas terei um renome imorredouro;
porém se eu regressar a casa, para a amada terra pátria,
perece o meu renome religioso, mas terei uma vida longa
Não deixa de ser um pouco cômico imaginar que Aquiles poderia decidir se transformar num vinil, e não no Aquiles de céleres pés, herói cujo esplendor permaneceu imortal na memória dos homens.

De todo modo, o serviço está aí. O nome do empresário - tão afim aos tempos atuais - é Jason Leach, para quem tiver interesse.

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