Olavo e os intelectuais



Ontem acabei vendo a entrevista do Olavo ao Pedro Bial. A conclusão é: estamos cada vez mais enredados, afundados, numa série de confusões e mal entendidos que tornaram possível uma imensa cultura dos fake news, repercutidos inclusive no "debate" brasileiro.

Olavo conseguiu platéia no entremeio de vários fatores. O primeiro deles é certo elitismo intelectual que acabou se consolidando na universidade brasileira. Olavo enxerga isso como uma espécie de complô da "esquerda gramsciana" que "dominou" o debate nas universidades. Ele confunde uma série de coisas: por ex. o fato de que muitos filósofos que hoje estão em voga ganharam sua notoriedade por serem bons, não por serem "de esquerda"; ou ainda, o fato de que há milhares de outros pensadores que são ciclicamente minorizados, esquecidos ou deixados de lado, não porque a academia é "esquerdista", mas porque esse processo de esvaziamento/retomada é inevitável, embora a autocrítica da universidade o seja também. É inevitável que certos pensadores fiquem em voga, ou mesmo que ocorram batalhas de primazia ou privilégio em departamentos no mundão afora. Mas isso não implica um "projeto esquerdista de dominação gramsciana". Tampouco os pensadores são simplesmente reprimidos por "não serem esquerdistas", e há inúmeras retomadas cujo movimento não é simplesmente controlável ou gerido por "projetos ideológicos". É falsa a declaração dele de que a "esquerda gramsciana" domina as pautas pelo controle das teses que podem ou não ser defendidas. Mas Olavo se aproveita de duas coisas: há de fato certos temas mais amplamente visados e existem de fato inúmeras disputas de primazia em departamentos. Unindo os dois, tudo se passa como se existisse uma "dominação esquerdista global", o que nem de longe é verdade.

Mas volto ao elitismo intelectual: de uma geração para cá, houve certo encastelamento da intelectualidade brasileira (também devido a uma série de fatores...), que não deu a mínima para a divulgação científica ou a incursão no debate público. O crescimento do modelo acadêmico norte-americano dos "papers" e a ideologia do "produtivismo" foram cruciais nisso: se a geração anterior se fechou no erudicionismo, a geração atual foi aprisionada no produtivismo, nos backlinks das citações. A academia dos anos 2010 se parece com o Technorati dos anos 2000 (o Technorati era um índice de backlinks utilizados em blogs: quanto mais links um blog recebia, mais ele era considerado importante, não importando sua real pertinência ou qualidade): a obrigação de backlinks e o especialismo em muito se sobrepoem ao trabalho lento e gradual, inclusive "global". Apresentando-se como filósofo generalista, Olavo se aproveita disso.

O fato é que o "público culto e não especializado" ficou órfão de maiores leituras. Um pouco disso foi por assim dizer "contido" nos anos 2000 devido ao debate suscitado pelos blogs, mas esse debate foi esvaziado quando criaram o twitter e o facebook (até o Orkut, em boa parte, era movido por comunidades virtuais). Olavo é player no debate virtual - e no filão do "público culto mas não especialista" - ao menos desde os anos 1990. De lá para cá ele nunca largou mão. Os blogs, em contraparte, surgiram e acabaram entre 2001-2012. De lá para cá, multiplicaram os sites de "direita" com viés "liberal" e "conservador" (Ilisp, von Mises etc.), enquanto os sites ditos "progressistas" praticamente sumiram (lembremos de seu auge quando Lula se encontrou certa vez com os "blogueiros progressistas"). Disso tudo, o fato é que, independente desse estereótipo "esquerda-direita", nos anos 2000 o debate era mais amplo e plural (houve campanhas do Estadão inclusive pastichando o poder de convencimento dos blogs), e degringolou num esvaziamento tanto dos blogs mais pluralistas quanto dos blogs de esquerda, enquanto cresceu vertiginosamente o filão para os think tanks dos espectros mais "direitistas".

Persistente, Olavo "correu por fora". Obstinado, acabou se fortalecendo com tudo isso e calhou de chegar a sua vez.

Inclusive, Olavo se fortaleceu pela própria omissão dos intelectuais, que o consideraram pouco importante. Um caso nítido é seu livro sobre Aristóteles, que promete uma "nova interpretação". O livro inteiro é feito a partir de um artigo que foi negado por uma revista. Diante dos estudos aristotélicos, Olavo é irrelevante e pouco citado, o que contrasta com o grande valor que ele se atribui (Christian Dunker já mostrou isso). Mas, sem maior crítica, a produção e divulgação de seu livro novamente correram por fora dos estudos aristotélicos. Inclusive, boa parte do livro comenta apenas sobre a recusa de seu texto. O que, em termos publicitários e unido ao silêncio dos intelectuais que não foram ao ponto da refutação efetiva, ajuda a dar o efeito de que Olavo luta contra a "esquerda" que negou sua interpretação "genial".

Outro fator importante de sua ascensão é óbvio: o antilulismo crescente e irrigado com programação diária (isso não precisa ser comentado).

Há, ainda, outra questão importante, que é a da dita "renovação cultural" propagada por ele. Olavo junta em suas crendices uma espécie de "missão", na qual o Brasil deveria ficar pronto para uma verdadeira renovação cultural "para daqui a 30 anos". Por isso ele põe o alvo na sociologia e na filosofia. Segundo ele, uma série de pensadores, inclusive brasileiros, teria sido esquecida, obliterada ou reprimida pelo "projeto gramsciano" dominador de universidades.

Na entrevista com Bial, Olavo é categórico: teria trazido à luz "milhares" de pensadores injustamente "esquecidos" pela "esquerda" (no fundo, "esquerda" significa quase todo pensamento discordante). Inclusive, isso serve de artifício retórico para "desmascarar" a "esquerda", e uma diversão dos alunos de Olavo é perguntar aos "especialistas" se eles conhecem algum desses pensadores ditos como tão importantes. Para os olavistas, o não conhecimento de um especialista sobre algum desses autores não testemunha o fato de que há inúmeros outros intérpretes igualmente esquecidos, ou que tais pensadores não estão em voga porque foram sobrepujados, ou ainda que há inúmeras retomadas cíclicas na universidade; para eles, o desconhecimento é uma espécie de sinal, de senha que reforça a crença na "dominação esquerdista". Assim, pensadores escolhidos por Olavo como bons ou os melhores, tais como Eric Voegelin, Mario Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux e outros seriam players importantes para tal renovação cultural, em detrimento dos autores "esquerdistas" que se estudam na universidade e teriam ocultado a importância deles.

Diante disso tudo, o fato nu e cru é que Olavo foi erigido como pensador que inspira até o governo de Bolsonaro. Para chegar ali ele foi beneficiado por vários fatores, que envolvem sua própria obstinação, o "antiesquerdismo" crescente, o antipetismo e o fechamento das comunidades virtuais (a passagem do "link" para o "follow" precisa ter uma história...). Comunidades como o Facebook e o Twitter utilizam diariamente o mesmo estilo de discurso que Olavo sempre utilizou: linguagem direta, sem rodeios; o desafio "aqui e agora" e a vitória por "lacração" (como se a retórica momentânea atestasse a prova da intelectualidade verdadeira). Enfim, lá se vão, nas principais comunidades virtuais, mais de 10 anos de hábitos de pensar, bem acolhedores de quem já pensava assim.

Ainda estamos no início do governo Bolsonaro e os retrocessos são vários. Em muitos sentidos já se fala em "guerra cultural". A geração anterior à de nossos professores era rigorosa, mas não deixava de lado a divulgação e o viés políticos. A geração de nossos professores tentou acompanhar a geração passada, emulando o rigor e a erudição, mas em boa parte perdendo o contato com o público. Resta a pergunta para a geração dos professores atuais, pois ela se coloca exatamente entre 1) o rigor e a erudição que encastelou parte importante da geração passada, 2) o produtivismo e o especialismo que constitui o momento atual, e 3) o desafio da "vulgarização" que exige o papel público do intelectual, e que Olavo tão bem soube aproveitar (reunindo aí também, ou principalmente, o antipetismo que calhou).

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